Religare?



Então, acaba sendo meio inevitável eu retornar ao tema religião, porque no fim das contas é o que eu estudo, e acho que é a área onde tenho opiniões mais polêmicas – e, pra alguns, contraditórias.

Eu acho que se os religiosos em geral lessem um pouco sobre a construção da verdade segundo Foucault muita aporrinhação seria evitada – ou pelo menos diminuída. Vamos lá, meu povo, verdades são construídas segundo relações de poder. Nem vou enveredar por aí porque não sou grande especialista no careca, mas basta dizer que, resumidamente, você aceita para si a verdade que lhe convém. Se lhe convém acatar tudo que o pastor/padre/rabino/pai de santo/xamã diz, essa vai ser a sua verdade; se lhe convém acreditar na Grande Abóbora, essa vai ser a SUA verdade. O problema é quando você cisma que essa verdade tem que ser a dos outros também. E, pior, quando cisma que a SUA verdade, da forma como VOCÊ a concebe, é a única. Veja bem, mesmo dentro de uma mesma igreja pode haver mais de uma forma de entender a doutrina. Então quem garante que você tá certo?

Eu sempre impliquei com a ideia de evangelização. Desculpa, mas é verdade. Já disse aqui algumas vezes que sou metodista porque admiro profundamente as ideias de John Wesley, mas que minhas opiniões não representam de forma alguma os princípios da Igreja Metodista – mas não custa lembrar. Eu leio, ouço, reflito, passo em vários filtros, e daí retenho o que me parece mais coerente e descarto o resto. Ou seja: minhas opiniões representam única e exclusivamente os MEUS pensamentos. Não me venham imputar cargas que eu não me comprometi a carregar. Não sou pastora, nem assessora de imprensa ou porta-voz pra falar pela instituição. Mas voltando ao lance da evangelização; sorry, irmãos, mas eu não concordo muito com a ideia de evangelização não. Acho que as ideias de Jesus (coloca aspas aí – não há registro de que Ele tenha deixado algo escrito, aliás, na verdade, muito provavelmente Ele era analfabeto) não são pra CONVENCER ninguém. Cantar em trem ou ônibus, entregar papelzinho na rua ou bater na porta das pessoas domingo de manhã, estatisticamente falando, mais queima o filme dos evangélicos do que dá algum retorno do tipo que vocês esperam. Sério mesmo. Conheço muita gente traumatizada, que desenvolveu verdadeiro preconceito com religiosos. E não me venham com aquela ideia de “religioso vazio” e talz, vocês sabem do que estou falando.

Eu poderia discorrer por horas sobre o assunto (mentira, não poderia porque vou sair daqui a pouco e provavelmente nem vou terminar este texto agora), mas basta me ater a alguns pontos importantes, que, aparentemente, são ignorados pela maioria.

Primeiro: a Reforma não rompeu com aquela ideia de intermediário entre Deus e os homens? Depois da Reforma o papel dos padres – ou, no caso, dos pastores – não passou a ser de simples condutores (daí, inclusive, o nome) , ao invés de porta-voz de Deus? Todo mundo não tem acesso à Bíblia? Então porque diabos (ops) vocês cismam que alguém para estar “salvo” precisa estar enfiado numa igreja? A Bíblia não diz isso em lugar nenhum, se bem me lembro. Na boa, certas pessoas que conheci dentro de um templo desvirtuariam o próprio Jó facilmente (ele, também, uma construção, diga-se de passagem). Eu não preciso ouvir o pastor para ter comunhão com Deus. Precisaria dele caso tivesse alguma dúvida doutrinária ou precisasse de aconselhamento (ou poderia pagar um psicólogo, wathever). Eu gosto de ouvir pregações, quando o cara sabe do que tá falando. Eu acredito piamente que Deus pode (veja bem, PODE, não que sempre o faça) falar através de um pastor, durante uma pregação. De verdade. Agora, se começar a me ameaçar com o inferno por não concordar com coisas que ele INTERPRETOU aí vai começar a me lembrar muito os padres pré-Reforma e meu Lutero vai querer pregar papeis nas portas das igrejas. Melhor evitar, vai por mim.

Segundo: a Bíblia tem três aspectos, e pelo menos dois deles são em geral ignorados: ela é um texto sagrado (eu ia colocar uma definição aqui, mas né, isto não é um artigo); ela é uma obra literária; e ela é um documento histórico. Antes que me taquem pedras, vamos pensar (fazer isso de vez em quando faz bem e não dói, acreditem). O status de livro sagrado é inquestionável, pelo menos para os seguidores das diversas linhas de cristianismo existentes por aí, então nem vou me alongar nisso. Ela é uma obra literária porque é composta de diversos gêneros literários diferentes, compilados em diversas épocas, em comunidades diferentes (surpresa! A Bíblia não caiu do céu pronta, ela foi construída). E, talvez o mais chocante para teístas e ateístas, ela é um documento histórico sim – na medida em que representa a mentalidade da época (ou das diversas épocas) em que foi escrita, e contém eventos com alguma plausibilidade histórica (esqueçam essa ideia de “prova histórica”, mesmo fatos podem ser montados). Pensando nesses três aspectos, sem ignorar os que nos convêm, podemos chegar aos seguintes raciocínios: 1 – A Bíblia contém erros sim. Contradições às vezes muito claras. Pedaços de texto soltos e fora de ordem. Podem me chamar de herege, mas qualquer leitor atento percebe isso. É impossível uma obra humana, por mais inspirada que seja, sem erros. 2 – A Bíblia não deve ser entendida de forma literal, até porque os eventos que ela narra – mesmo os que contêm alguma parcela de plausibilidade histórica – em sua grande maioria foram escritos anos, décadas, às vezes séculos depois de terem ocorrido. E mesmo com a cognição peculiar da cultura oral, diferente da nossa, ninguém tem memória de elefante. 3 – A Bíblia é repleta de pegadinhas do tipo “parece mas não é”. Marcos não escreveu o Evangelho de Marcos. Mateus não escreveu o Evangelho de Mateus. Lucas... Bem, a ideia é a mesma. Na antiguidade era usual atribuir um texto a algum nome importante para dar a ele, o texto, autoridade. Não à toa várias cartas paulinas são contraditórias; além de interpolações posteriores, algumas simplesmente foram escritas por outras pessoas, muitas décadas depois da morte de Paulo. Aí nós vemos mulheres na liderança das comunidades, ensinando e pregando em algumas passagens, e em outra sendo avisadas para “manter silêncio”. Como eu não acredito que Paulo tenha sido esquizofrênico, nem sofresse de dupla personalidade, é bem provável que tenha havido acréscimo de copistas nisso aí.

Enfim, como eu disse a discussão é longa, e eu poderia discorrer sobre ela durante bastante tempo. Eu continuo tendo minha fé, mas realmente é impossível dissociá-la do raciocínio lógico, da razão, e dos questionamentos. Afinal foi o próprio Wesley que disse: “Nós temos o princípio fundamental de que o renunciar à razão é renunciar à religião, que a religião e a razão caminham de mãos dadas e que toda religião sem a razão é falsa.” A diferença é que eu não tenho a menor necessidade de convencer os outros de que a minha verdade é a única – até porque eu sei que não é. Tenho consciência da minha pequenez e das minhas limitações pra chegar a esse nível de megalomania. Acredito num Deus soberano – logo, Ele não precisa de mim, seja como advogada, seja como assessora de imprensa e muito menos como porta-voz. E, se você não acredita que Ele exista, se Ele quiser, Ele te convence do contrário. Com uma palavra dita por mim ou lida num outdoor. Se Ele não quis até agora... Quem sou eu pra tentar forçar?

Escrevi este texto já há uns dias, mas não tive tempo de postá-lo antes. Então, se eu não for queimada por heresia, qualquer dia desses eu volto.