Le Roi Soleil - detalhes

O musical é apresentado por Molière, um dos mais famosos escritores da época, e começa num episódio que marcou a infância de Luis, Le Dieudonné (Ana da Áustria, mãe de Luis, só conseguiu engravidar depois de 22 anos de casamento, quando já não acreditavam mais na fertilidade da rainha; por isso a criança foi considerada um “presente de Deus” e chamada como tal): La Fronde, conflitos que estouraram em Paris e levaram a França a uma verdadeira guerra civil entre 1648 e 1651, devido aos pesados impostos que eram cobrados para financiar as intermináveis guerras contra a Espanha. Esses conflitos envolveram inclusive muitos nobres, próximos à família real. Esses nobres, no musical, são representados pelo Duque de Beaufort; embora seja uma figura histórica, na verdade ele representa várias pessoas ao longo do musical. Por fim, o exército de Mazarin, o primeiro-ministro, acaba por vencer o conflito e Beaufort é condenado ao exílio (mas depois é perdoado – numa representação do Grande Condé, ele sim, um Príncipe do Sangue como mencionado no musical com referência a Beaufort).

A segunda cena apresenta uma parcela boêmia da sociedade parisiense, aqui representada como membros da corte provavelmente por ser mais cômodo, embora a realidade não fosse essa. Conhecemos então a jovem Françoise d’Aubigné, futura esposa do dramaturgo Paul Scarron. Logo depois são realçadas a importância do papel de Mazarin como preceptor do jovem rei e a alta estima que a rainha Ana tinha por ele (estima essa que gerou muitas especulações acerca da natureza do relacionamento dos dois). A seguir o rei é coroado (embora ele tenha se tornado rei imediatamente após a morte de Luis XIII, em 1643, o pequeno Luis tinha apenas 5 anos quando subiu ao trono sob a regência da mãe; em 1651, com 13 anos, ele atinge então a maioridade oficial, que lhe permitia assumir a realeza inteiramente, e foi sagrado rei 1654, aos 16 anos, na catedral de Rheims), e seu irmão Phillipe, mais conhecido por seu título Monsieur, é apresentado (na corte da época, quanto menor o título maior a importância de seu portador. No caso, Phillipe era o segundo homem mais importante do reino, atrás apenas do próprio rei). Uma coisa é importante ressaltar sobre esse personagem: no musical ele é o tempo todo apresentado da forma mais excêntrica possível. Guardadas as devidas proporções, isso não está tão distante assim da realidade; Monsieur, que não escondia de ninguém sua preferência por rapazes, entrou para a História por seus gostos e comportamentos extravagantes. Logo depois de Phillipe, entra em cena a astuta Maria Mancini; a língua ferina e a inteligência afiada da italiana real, que conquistou o rei por seu gênio mais do que por sua beleza, são deixadas de lado no personagem do musical, transformada então em uma heroína romântica (embora ela faça pequenos comentários mordazes sobre a corte assim que entra em cena, mas essa característica é deliberadamente abandonada no decorrer do enredo). Luis conhece Maria, e queda-se enamorado por ela imediatamente.

Uma outra “licença poética” digna de nota – e bem de acordo com a imagem de herói romântico que se quer passar no musical – é a ida de Luis a Flandres, à frente de seu exército, onde ele é ferido em batalha e fica à beira da morte (detalhe: A música que os personagens cantam, Requiem Aeternum, foi uma das músicas compostas para o funeral do rei em 1715, “um pináculo da música barroca francesa”, segundo Antonia Fraser). Na verdade essa sequência de cenas alude ao ano de 1658, quando Luis estava com seu exército em Mardyck para a Batalha das Dunas, que tomou Dunquerque do domínio espanhol. Nessa época ele ficou doente, provavelmente com febre tifóide, e o quadro se agravou após sua retirada para Calais. Com 19 anos Luis esteve à beira da morte, e muitos acreditavam que ele não escaparia. Duas coisas importantes merecem ser aprofundadas aqui, já que há alusão a elas no musical; primeira, a total submissão de Phillipe a seu irmão, e seu absoluto desinteresse pela coroa, ao contrário de muitos irmãos que, ao longo da História, ambicionavam às vezes em demasia a posição. Phillipe foi cuidadosamente criado à sombra de Luis, e de um modo geral achava esse arranjo bastante confortável. Foi notório seu desespero – inclusive em público – durante a convalescência do irmão. Isso aumentou os laços de lealdade entre eles, e Luis protegeu o irmão durante toda a sua vida, mesmo quando este agia de forma cruel para com sua esposa, ou quando sua homossexualidade extravagante gerava escândalos (Luis tolerava com muito mais paciência o homossexualismo do irmão do que jamais tolerou de qualquer outro). A segunda menção digna de nota nessas cenas são as lágrimas vertidas por Maria Mancini durante a doença do rei. A paixão de Luis por Maria já vinha incomodando a rainha Ana e o Cardeal Mazarin (tio de Maria) há algum tempo; o rei parecia por demais enfeitiçado por aquela imigrante italiana cuja escassa posição social fora angariada graças ao tio. Os detratores – que, de um modo ou de outro, não foram poucos – disseram que tais lágrimas representavam a destruição dos planos ambiciosos de Maria de se tornar um dia Rainha da França; mas pela natureza da personalidade da italiana que nos chegou até hoje, parece que foram lágrimas sinceras. Maria estava de fato apaixonada pelo radiante Apolo, cuja luz aos poucos era eclipsada pela doença.

Mas de alguma maneira o milagre ocorreu, e Luis recuperou-se (aliás, a rave que acontece no musical pra simbolizar a recuperação de Luis, nas primeiras vezes a que eu assisti, soou-me extremamente despropositada. Mas dada a personalidade de Monsieur, até que hoje eu vejo algum sentido). O “feitiço” italiano tornou-se mais forte após as históricas lágrimas durante a doença, e por algum tempo Luis acalentou a ideia de tomar Maria por esposa. É claro que essa pretensão era totalmente repudiada por Ana e Mazarin, que já estavam arquitetando um casamento Real para Luis com a infanta da Espanha, selando com isso a paz há muito desejada pelos franceses, após longos anos de conflito armado com o país vizinho. Consta que Ana da Áustria reagiu de forma irritada à menção feita por Mazarin sobre os sonhos maritais de Luis: Após consultar o Parlamento de Paris acerca de um possível casamento de seu filho sem seu consentimento, Ana afirmou que, caso Luis cometesse essa loucura, os nobres e toda a França se revoltariam, e ela mesma encabeçaria os rebeldes. Mazarin, por sua vez, não muito afeito à jovem Mancini, teria dito durante uma discussão com Luis que preferia ele mesmo apunhalar a sobrinha para evitar tal afronta. O fato é que, com as negociações com a Espanha já adiantadas, o que restou ao casal foi despedir-se em meio a muito sofrimento e lágrimas registradas por escritores da época. Maria seguiu rumo ao exílio e posteriormente casou-se com o príncipe Colonna da Itália, e Luis casou-se com a princesa da Espanha, Maria Teresa, sua prima (Ana da Áustria era irmã do rei Espanhol, que por sua vez era casado com a irmã de Luis XIII, marido falecido de Ana e pai de Luis). É importante ressaltar que Luis foi criado desde a mais tenra infância para amar sua própria glória acima de tudo – ele mesmo afirma nos seus escritos destinados ao Delfim que colocou a paixão à gloria acima de todas as outras. Por mais enamorado que estivesse por Maria Mancini – e os problemas que ele gerou pra Mazarin e pra Rainha, enfrentando-os declaradamente pela primeira vez na vida, demonstram que de fato estava absolutamente enamorado por ela –, a pressão da mãe e do primeiro ministro acabaram por trazer à tona uma das mais famosas características de Luis XIV: Um senso de dever inabalável para com sua glória e a da França, acima de seus próprios sentimentos ou interesses particulares. Entre abdicar da fama de um reinado triunfante e abdicar de um amor, ele por fim cedeu e abdicou do amor – e, verdade seja dita, poucos homens fariam diferente. Ele acreditava de verdade que nascera com a missão de ser o Rei do mundo, e fazer da França o maior reino do mundo. Nada o desviaria desse caminho, nem mesmo seus sentimentos. Com a despedida de Luis e Maria, temos o final do primeiro ato.

O segundo ato começa com a morte de Mazarin, e a ascensão definitiva de Luis como soberano absolutista, ao negar-se a escolher um novo primeiro-ministro. Na verdade o Rei Sol reteve consigo muitas lições do período da Fronde, entre elas controlar a influência da nobreza em seu reino. No fim da sua vida, aquela nobreza dominante, que insurgiu-se contra as determinações de Mazarin e levou a França a uma guerra civil, havia sido reduzida a títeres, verdadeiros enfeites que disputavam desonrosamente entre si para ter privilégios como o de esvaziar o penico real. E isso não é um exagero; Luis sobressaiu-se de tal forma como monarca dominador que qualquer oportunidade de estar próximo a ele e usufruir dos benefícios dessa proximidade (títulos, dinheiro, etc) rendiam intrigas e disputas das mais ferrenhas entre os nobres. De certa forma, Luis conseguiu, ao longo de sua vida, manter um controle tão extremo de seu país e de sua nobreza que não à toa é considerado como o responsável pela verdadeira modernização da França. Sob seu reinado, a França transformou-se num país poderoso; mas no final também viu-se afundada em fome, miséria e dívidas e devastada quando Luis começou a dar vazão a suas utopias bélicas. Mas isso ocorreu muito depois.

Após o anúncio de Luis com a famosa (e até hoje não comprovada historicamente) frase L’État c’est moi – “O Estado sou eu”, começa um “entre-cenas” cuja música chama-se Le ballet des planètes. O interessante nessa parte do musical é a introdução de Luis como o personagem mais marcante de todas as suas atuações: o sol. Na verdade ele o representou pela primeira vez no Ballet de la nuit, quando tinha 14 anos, mas esse era um personagem caro a Luis, que o transformou em símbolo de seu reinado – e de si mesmo – e recorrente em vários ballets posteriores. A seguir conhecemos a mais famosa amante de Luis XIV, Françoise-Athénaïs de Rochechouart de Mortemart, Madame de Montespan. No musical, a sedutora marquesa tenta resistir às investidas de Luis (ela era casada e, a essa altura, já tinha um casal de filhos), mas a realidade talvez tenha sido um pouco diferente. Casada com um aristocrata em dificuldades financeiras, aparentemente ela vislumbrou um futuro mais glamouroso tornando-se amante do rei, e fez o possível para seduzi-lo. O fato é que Athénaïs foi amante de Luis durante 17 anos, e deu-lhe 7 filhos. Seu bom gosto e seu talento inerente para o mecenato muito influenciaram Luis na criação de Versalhes e em outras situações também – seu “domínio” (que era sobretudo sexual) era comentado em toda a corte, como é mostrado no roteiro. Em todo caso, não consta que a indicação de Montespan para dama de honra da rainha tenha partido de Monsieur, como consta no musical.

A cena seguinte, com La Voisin, fica melhor explicada mais adiante. Basta dizer por ora que Voisin era uma famosa “feiticeira” da época, muito requisitada por nobres em busca de filtros de amor, afrodisíacos e, em casos mais extremos, venenos. Fora isso, cabe ressaltar que a indicação de Françoise d’Aubigné, depois tornada Françoise Scarron, para preceptora dos bastardos reais com Athénaïs não partiu de Ninon como no musical. Ninon de Leclos, aliás, era uma famosa cortesã (prostituta de luxo) que conhecia, sim, Françoise, mas não tinha tamanha influência na corte. A contratação de Françoise partiu da própria Athénaïs, que a conhecia há muito tempo, do círculo boêmio parisiense. O caso é que os filhos de Montespan com Luis deveriam ser mantidos mais em sigilo do que todos os demais bastardos reais, pois eram frutos de um duplo adultério – um pecado escandaloso para a sociedade da época (embora amplamente cometido). Enquanto o problema do casamento de Athénaïs não era resolvido (e realmente tornou-se um problema, já que seu marido era irascível e nem um pouco propenso a tolerar a infidelidade da esposa, ainda que com o próprio rei), as crianças geradas nesse relacionamento adúltero precisavam ser mantidas no mais absoluto sigilo.

A festa mencionada na cena seguinte é a Grande Recepção Real, realizada em Versalhes em 1668 para comemorar a Paz de Aix-la-Chapelle, mas em grande medida para honrar a nova favorita de Luis, Athénaïs. Um importante personagem da época também nos é apresentado nesse momento: trata-se do ministro das finanças, Colbert, o homem responsável por revolucionar a economia francesa – e, dadas as enormes quantias despendidas pela corte de Luis XIV, podemos dizer que foi o principal responsável pelo país não quebrar totalmente. A posterior menção ao homem da máscara de ferro, por sua vez, provavelmente é folclórica.

A seguir temos o começo da derrocada de Athénaïs nos favores reais, e a ascensão de Françoise, a então viúva de Scarron. Vemos também o filho mais velho de Montespan com o rei, o Duque do Maine, deficiente de uma perna e o preferido de Françoise. Nessa cena transparece as discussões e brigas de ciúmes entre a mãe e a governanta por causa do filho. Todos esses fatos são históricos – não que Athénaïs possa ser considerada uma mãe carinhosa e exemplar, poucas mulheres nobres poderiam se dar a esse luxo na época. O fato é que Montespan estava habituada a ter todas as atenções voltadas para ela, atenções que por vezes começaram a ser roubadas pela séria e reservada Françoise. Uma questão que talvez deva ser mais esclarecida é que, ao chamar Françoise de Madame de Maintenon, isso significava que Luis lhe estava dando o castelo de Maintenon. Na verdade, Françoise o comprou com quantias dadas por Luis por seu trabalho junto aos bastardos reais, mas em todo caso realça a crescente estima que o rei nutria por ela.

Retomemos então a aparição de La Voisin. Em 1679 eclodiu o famoso Caso dos Venenos, um escândalo que relacionava diversos nomes de peso da corte francesa com a prisão de Catherine Monvoisin, La Voisin, acusada de bruxaria. Como ela mencionou uma enorme lista de suspeitos, foi instaurado um tribunal não oficial conhecido como Chambre Ardente. Mais de quatrocentos casos foram apurados, e teve início uma verdadeira caça às bruxas na França. A situação da corte começou a se complicar quando duas das irmãs Mancini, Olympe e Marianne, então condessa de Soissons e duquesa de Bouillon, respectivamente, foram mencionadas. O nome de Athénaïs foi citado, o que aumentou o escândalo de forma alarmante. No fim das contas, ao contrário do que é demonstrado no musical, Luis tomou a frente ele mesmo e ordenou a suspensão de todos os processos que envolvessem a marquesa de Montespan, isolou os criminosos e reteve os papeis que citavam Athénaïs consigo por muitos anos, até queimá-los. Tudo indica que o rei acreditava realmente na inocência da marquesa e, em todo caso, parece muito pouco provável que Athénaïs lucrasse alguma coisa tentando envenenar o rei, sem contar a religiosidade sincera que era marca de sua personalidade. Seu lugar na corte esteve assegurado durante algum tempo depois disso, embora o interesse real já estivesse em rápido declínio. Mas, para o enredo do musical, foi uma saída rápida de cena para Montespan, que dispensava maiores explicações.

Versalhes, o grande palácio de Versalhes, reformado a partir de uma casa de campo de Luis XIII, e grande menina dos olhos de Luis XIV, sua maior criação e reflexo do esplendor de sua corte, não poderia ficar de fora do musical e mereceu um número próprio para ele, com a música Et vice Versailles. Luis jamais parou de reformá-lo durante toda sua vida, e mesmo depois ele foi muito modificado. Mas sem dúvida o palácio é a representação palpável da personalidade do Rei Sol. Finalizando, temos a insistência de Luis em cortejar Françoise sem sucesso, esta ressaltando a importância de um segundo casamento real com alguma princesa estrangeira, e Luis declarando finalmente que se casaria com ela. Obviamente as coisas não foram tão românticas assim; já passando da maturidade para a velhice, os arroubos passionais e sexuais de Luis foram aos poucos arrefecendo, e sua preocupação com a salvação de sua alma, um tema insistente por parte de sua mãe, veio a povoar sua imaginação. Nesse ponto muito tem-se que agradecer ao empenho da Igreja Católica, sempre lembrando-o de seus adultérios, e a fervorosa madame de Maintenon, que, apesar das investidas de Luis, resistiu por muito tempo oferecendo-lhe um tipo de relacionamento heterossexual totalmente novo para o rei: a amizade. Mas em determinado momento a própria Françoise deu-se conta de que, caso ela mesma não se submetesse aos desejos carnais do soberano, mais facilmente alguma mocinha estaria disposta a submeter-se, e sem os altos ideais que ela, Françoise, nutria. Finalmente ela cedeu, e tornou-se amante de Luis, embora tenha se esforçado para deixar bem claro que não estava assumindo o posto outrora ostentado com orgulho por Athénaïs.

Após a morte da rainha Maria Teresa, Luis contrariou a expectativa de todos e optou por não contrair segundas núpcias. Isso poderia ter um fundo político, já que guerras entre meio-irmãos abundavam nas casas reais europeias, o que poderia ser evitado não escolhendo uma segunda rainha e não iniciando, assim, uma nova linhagem. Por outro lado, Luis estava absolutamente envolvido com Maintenon e com o projeto desta de salvação da alma do soberano. Desta forma, se ele se casasse novamente, voltaria a cometer adultério. A saída encontrada por Luis foi uma espécie de “casamento secreto”, comum à época; o casamento se realizava perante um clérigo, com algumas poucas testemunhas, e era regulamentado pela igreja, mesmo sem implicações frente à sociedade. Ou seja, na prática Françoise se tornou esposa de Luis, de forma que satisfazer os desejos do rei não era pecaminoso; por outro lado, oficialmente Luis permanecia viúvo, já que não havia mais uma rainha em Versalhes. De qualquer forma, seria impensável para o alto senso de dever de Luis colocar uma mulher sem nascimento, como Françoise, no trono da França (mesma situação que o fez abdicar de seu amor por Maria Mancini na juventude). Desta forma termina o musical: a triunfal vitória do amor, outrora vencido pelas razões de Estado. É claro que na realidade as coisas foram bem menos românticas.